11 julho 2006

Antes da caridade

Antes da caridade
(Notícia não assinada, publicada no Jornal de Notícias online em 11/07/2006)

"Quando a bondade se mostra já não é bondade, embora possa ser útil como caridade ou solidariedade. Daí 'Não dês as tuas esmolas perante os homens, para seres visto por eles'. A bondade só pode existir quando não é percebida, nem mesmo por aquele que a faz; quem se veja a si mesmo no acto de fazer uma boa obra deixa de ser bom; será, no máximo, um membro útil da sociedade (…)." Ocorreu-me Hannah Arendt quando soube pelos jornais que o segundo homem mais rico do mundo iria doar parte do seu dinheiro (não, como Álvaro de Campos, aquele que dá do bolso onde tem menos, mas o do bolso onde tem mais) à fundação do homem mais rico do mundo. O multimilionário Warren Buffet, que acumulou qualquer coisa como 44 mil milhões de dólares, entregará 85% dessa fortuna à Fundação Bill e Melinda Gates. Buffet é, sem dúvida, um homem caridoso que não se deixou aprisionar para sempre pela vertigem do lucro (nem com os piedosamente hipócritas propósitos de criar riqueza ou postos de trabalho), mas a bondade é provavelmente outra coisa. Não vem nos jornais nem se anuncia e, se calhar, é mais motivo de desassossego e dor do que de auto-satisfação. E, se o mundo precisa de caridade, talvez (mas que sei eu?) precise ainda mais, muito mais, de bondade.
Fim da notícia.







Vem o aproveitamento deste texto a propósito da campanha publicitária, em curso, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Spots televisivos, múltiplos outdoors, fixos e com movimento, nas ruas, nas estações do Metropolitano, em tudo o que é sítio.
São muitos milhares de euros (senão milhões) gastos em publicidade, e a pergunta que me ocorre permanentemente é “Para quê? “.
Já o patrocínio do Lisboa-Dakar é muitissimo discutível, mas agora a campanha em marcha é, no mínimo, ofensiva para os necessitados e para todos os que colaboram e participam em dádivas e, nas chamadas, acções de beneficiência onde se angariam fundos para... fazer publicidade ?.
Qual o objectivo de uma campanha destas ?

Será atrair “Clientes” ?
Bom, digam-me que precisam de gente para ajudar, que eu digo onde está. Sem cobrar nada.


Será dar a conhecer a existência da S.C.M.L. ?
Foi criada em 1498, e se em 2006 não é já suficientemente conhecida, então é porque foi dirigida, ao longo de todo este tempo (508 anos), por gente completamente incapaz.

Será o quê ?
É uma situação de enorme perplexidade, sem sentido, sem objectivo, sem interesse, com... nada.
E são estas situações que levantam as maiores suspeitas sobre a forma de gastar dinheiro em Portugal, pelas Entidades estatais, para-estatais, de solidariedade social e muitas outras que funcionam com o dinheiro dos portugueses.

A Lotaria Nacional (existe desde 1783) não é suficiente como veículo publicitário, agora acrescida das outras lotarias, dos totojogos, dos eurojogos, ... ?

Claro meus Amigos, Visitantes, Irmãos, este é um desabafo, mas sinto-me indignado com o que se faz com o dinheiro em Portugal, principalmente quando é muito, principalmente quando a sua aplicação é uma ofensa a tantos que não tendo nada, não reivindicam nada e não chegam sequer a saber o muito que se poderia fazer para os ajudar, os ensinar, lhes curar o corpo e a alma.
Com o dinheiro gasto como ? Com uma Agência de publicidade ...!

Alegremente, publicitadamente, impùdicamente, impunemente !

Mas este assunto tem a ver particularmente connosco, claro que tem.
Verdade meus Irmãos ?

JPSetúbal

7 comentários:

Rui Bandeira disse...

Tens toda a razão!
Mas não vale a pena sermos ingénuos: a partir de um determinado nível, a Solidariedade deixa de ser um estado de espírito e passa a ser também um negócio, com "profissionais da solidariedade" devidamente pagos...
Outros exemplos há por aí...
Mas isto é como no desporto: o facto de haver profissionais não desmotiva os amadores de uma boa futebolada, ou basquetebolada, ou voleibolada.
Também os "profissionais da solidariedade" não desmotivam quem é solidário só ... porque é.

Jose Ruah disse...

Ficariam todos surpresos se estivesse integralmente de acordo.
Pois nao fiquem pois para vosso descanso Não estou integralmente de acordo.

Vamos começar por um facto. O Patrocinio do euromilhoes ao Paris Dakar.

O Euromilhoes é um jogo transnacional. Por uma razão legal apenas em Portugal o jogo é representado pela Santa Casa.
O Patrocinio ao Paris Dakar foi um contrato transnacional.

E se a publicidade permitir que mais uns milhoes sejam arrecadados e distribuidos entao a Publicidade nao foi um gasto desnecessario foi um investimento na Divulgaçao de uma fonte de receita futura que permitirá uma maior distribuição.

Dito isto é necessario compreender que a Santa Casa é uma instituiçao Sobejamente conhecida mas que tem de tempos a tempos relembrar a sua existencia e o que faz.

QUer queiram quer nao uma das fontes de rendimento maiores da Santa Casa são as Heranças e as Doaçoes. O Patrimonio herdado ou recebido em Donativo é absolutamente imenso.

Convém lembrar que se nao existirem herdeiros o patrimonio reverte para o Estado, e isso quer dizer que nada será feito com ele.
Pelo menos se reverter para a Santa Casa saberemos que algum beneficio trará.

Nos tempos actuais em que a solidariedade está ausente, lembrar ainda que de forma indirecta que é possivel continuar a nossa obra depois de partirmos parece-me uma boa causa.

Por isso não me choca que a Santa Casa tenha de tempos a tempos uma campanha.
Alem disso se de vez em quando a SAnta Casa puser no mercado alguns dos proventos que tem contribuirá seguramente para o crescimento economico.

Rui Bandeira disse...

@JoséSR:

Percebo o teu ponto de vista e, nele, entende-se as despesas em publicidade.
A questão está, como eu procurei acentuar, no preço da "profissionalização da solidariedade", que obriga à utilização da publicidade - como tu lucidamente apontas -, mas que não deixa de nos causar algum desgosto. Até a solidariedade fica engolida pelo Capitalismo e suas regras, pela Sociedade de Consumo e suas condicionantes, pela Globalização e suas consequências...
Isso é que nos faz ponderar se os caminhos que a Humanidade está a trilhar não deverão mudar de rumo.
Embora eu saiba que só se pode distribuir o que se produz e que há que saber viver com as exigências dos tempos actuais, tem que haver mais vida para além da produtividade!
Produtividade,lucro, eficiência energética, etc., tudo isso tem o seu lugar e a sua razão de ser, mas não me convenço que seja bom que as suas regras invadam também o campo da Solidariedade.
Muitos acreditam que há cerca de dois mil anos houve alguém que disse "A César o que é de César, a Deus o que é de Deus".
Que o campo de um não invada nem corrompa o do outro!

Jose Ruah disse...

@Rui Bandeira

Sem ir contra o que dizes tenta ver as coisas pelo seguinte prisma.

A passagem da caridade à solidariedade não se dá pelos 3 passos, mas sim pela Profissionalizaçao.

Numa epoca em que os recursos sao cada vez mais escassos, só uma gestão dos bens de forma adequada permite uma maximizaçao da intervenção social.

Atenta no seguinte exemplo:

O ano passado uns nossos amigos ficaram de entregar a uma instituição o produto de uma recolha de fundos que fizemos. E Eles perceberam que se forssem organizados e profissionais, e comprassem os bens quando estes estavam em promoçao ou com descontos poderiam com aquele montante entregar um valor percebido superior. E conseguiram quase 30 %.

POr isso tenho vindo a dizer nos foruns competentes que em vez de termos umas caridades deveriamos teruma verdadeira estrutura de Solidariedade.

Alias nao sou só eu a dizer isto vide os casos Champalimaud, Warren Buffet e Bill Gates.

Nada disto belisca o " ser solidario porque é " porque na verdade as instituiçoes precisam de pessoas que as liderem.

Rui Bandeira disse...

@ JoséSR:

Organizados, foram! Eficazes também!
Mas não eram "solidários profissionais", nem precisaram de o ser, para conseguir essa maximização.

Meu caro, acho que o teu exemplo confirma o que eu disse...

Quanto ao resto do teu último comentário: talvez seja efectivamente uma inevitabilidade que a eficácia acabe por implicar a profissionalização.

Mas não quer dizer que eu goste... Cá por mim, prefiro continuar a "jogar" como amador...

Rui Bandeira disse...

Meus queridos RB e JSR, mas que actividade comento-blogueira !
Não esperava um êxito tão grande...
Reabri agora a "oficina" e li com a maior atenção os Vs. comentários.
Meu caro JSR, não ficaria nada admirado se estivesses de acordo porque, de facto, a maior parte das vezes estás de acordo e particularmente no que toca a ser solidário estás sempre disponivel.
E também desta vez não estás em desacordo, tão simplesmente porque estamos todos de acordo, parece-me.
Tu referes as razões do Lisboa-Dakar, mas essas não me perturbaram por aí além, sei as razões e embora não concorde com a "fatalidade" reconheço que "tinha de ser assim"...
Diferentemente quanto ao que toca à campanha em curso.
Acabei de verificar que a campanha custa 2 milhões de euros e serve para comemorar os 508 anos da SCML.
Meu Caro José, conheces razão mais "abstrusa"?
Diz-me lá quanto Te parece que deverá ser gasto para comemorar os 509 anos ? e os 510 ? e os 511 ?
e quanto se gastou nos 507 anos ?
e nos 506 ?
José, 2 milhões !!!
Será que não há mais nenhuma razão para este gasto ? Não sei qual é a Agência, mas será que a tal de solidariedade não chegou também às Agências de publicidade ? Desculpa tanta pergunta, mas eu além de velho e chato sou um desconfiado do caraças !
Quanto ao resto são "amendoins"!
Abrações triplos.

Jose Ruah disse...

Só mesmo tu !!

Fui ler o ( na diagonal ) o relatorio e contas da SCML.

Acho que deves ler.

Pode ser que fiques mais soft com relaçao aos 2 milhoes de euros.

Dou-me agora conta que o abstruso é eu estar a defender a Santa Casa! ou talvez não seja tão abstruso assim.

http://www.scml.pt/